sábado, 23 de abril de 2011

Bélgica, um ano sem governo

Percival Puggina


Barra-me na rua conhecido anarquista. "Viste a Bélgica? Está há um ano sem governo, provando a inutilidade dessa instituição. Quando é que vamos aprender, Puggina?". Pensei em sugerir a ele muita calma, mas ponderei que a calma não costuma integrar o arsenal psicológico dos radicais. Apelei, então, para as palavras mais sábias de meu repertório, aprendidas do amigo José Antônio Celia: "Não é bem assim, meu caro". Essa frase, para quem ainda não foi advertido sobre seu extraordinário potencial retórico, é como aquelas poções dos ambulantes medievais. Serve para tudo. De um lado é compatível com quaisquer refutações moderadas que se faça. De outro, raramente admite contestação plena.

A Bélgica não está sem governo porque o queira, mas porque os partidos não conseguem compor um. O rei se inquieta e até os estudantes saem às ruas para protestar. Os jovens belgas querem governo e, se meu amigo anarquista deseja extrair uma lição daqueles fatos, tome essa entre as mais significativas. Comendo suas batatas fritas, tão notáveis, encorpadas e saborosas que se constituem em símbolo nacional, a moçada exige, nas ruas, governo e governabilidade.

Os belgas conseguem atravessar esses meses todos sem governo porque lá, como em qualquer país racionalmente organizado, existe clara separação entre o Estado, o governo e a administração. O funcionamento regular da administração, profissional e apartidária, mantém ativos os serviços públicos. É essa separação, então, que torna possível conviver com hiatos de governabilidade, vale dizer, sem expressão das ideias políticas majoritárias na condução dos rumos nacionais.

Por outro lado, a função governo, em países que fazem a conveniente distinção acima mencionada, é sempre enxuta, modesta nas suas proporções e econômica nos seus custos. Neles, quando muda o governo, substituem-se umas poucas centenas de servidores e em nada fica afetada a administração. Já no Brasil, são dezenas de milhares de cargos e fontes de receita em torno dos quais se engalfinham as lideranças políticas que chegam ao pote do poder. Compor governo, na Bélgica, pode ser um problema. No Brasil, país onde o povo, em vez de domar os poderes à sua justa medida ajoelha-se ante seus favores, governar é um regabofe. Se meu amigo anarquista quer outra lição dos fatos belgas, tome também esse entre os mais significativos.

O Reino da Bélgica é uma composição federal de regiões com diferentes origens, cujo hino nacional tem versão em três idiomas, holandês, francês e alemão. Nasceu como nação independente há menos de dois séculos, numa das revoluções europeias de 1830, pela vontade dos cidadãos de Bruxelas. Não havendo quem os defendesse, foram às ruas lutar por independência. Conta-se que quando Sylvain Van de Weyer retornou para Bruxelas, juntando-se à população, uniu-se ao comando um republicano, de perfil autoritário, chamado Louis de Potter. Inquirido por um auxiliar sobre onde deveria instalar, no Palácio Real, aquele novo membro do governo provisório, Van de Weyer, que era um liberal, indagou se havia alojamento vago no segundo andar. Diante da resposta afirmativa, determinou: "Coloque-o lá. Não existem ditadores de segundo piso".

A realidade brasileira é tão diferente! Aqui o autoritarismo se instala onde quer que haja um gabinete, uma caneta e uma sala de espera. Querer apropriar entre nós, de modo permanente, a atual e provisória situação belga, é um despropósito. Precisamos ter menos governo e mais sociedade, precisamos ter mais município e menos Brasília. Comecemos por aí, então, quem sabe estudando a experiência belga e de tantos outros países com elevado grau de desenvolvimento político, econômico, social e cultural. Aprendamos o bê-á-bá da cultura política, da conduta reta, do interesse público, da austeridade e da organização de um Estado na justa medida, alinhado com as demandas da modernidade.

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* Percival Puggina (66) é titular do blog www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões.

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